A Dra. Renata Do Val publicou artigo critico sobre o triste caso das vítimas da empresa Vale em Brumadinho, confira:
"Em mais um triste episódio do descaso ambiental no Brasil, vemos a tragédia do rompimento de barragens se repetirem no Estado de Minas Gerais, dessa vez ocorrida na empresa Vale na Cidade de Brumadinho.
Acompanhamos no noticiário que vários trabalhadores foram soterrados, faleceram e dos poucos resgatados muitos se encontram em estado grave de saúde, além dos trabalhadores moradores da região, animais e tudo que se encontrava no caminho da lama passam pela mesma situação.
Quanto ao ponto de vista do Direito do Trabalho, é importante mencionar que a atual tragédia ocorreu em poucos dias após o presidente da República, em entrevista a TV aberta, ter declarado a possibilidade da extinção da Justiça do Trabalho no país.
O ocorrido em Brumadinho comprova a necessidade da manutenção da Justiça do Trabalho em nosso país, já que como vimos existem inúmeros acidentes de trabalho além de outras causas que esta justiça aprecia.
Podemos dizer que o rompimento da barragem da Vale é um dos maiores acidentes do trabalho do Brasil, mesmo se comparado ao também recente episódio, se assim podemos dizer, ocorrido em Mariana com o rompimento da barragem da mineradora Samarco.
Após o ocorrido, venho acompanhando artigos e entrevistas abordando a questão da indenização dos trabalhadores da Vale quanto ao acidente do trabalho ocorrido, muitos afirmando que a reforma trabalhista limitou a indenização destas pessoas e seus familiares, como se a lei posta fosse de aplicação obrigatória sem que houvesse qualquer análise prévia.
Importa anotar que primeiramente se faz necessário diferenciar as vítimas e o grau de sua lesão, inclusive a morte.
No local existem empregados da Vale, empregados terceirizados cuja tomadora era a Vale e prestadores de serviços autônomos. Quanto ao grau das lesões temos a mais grave, a perda de vida, e lesões que podem ou não ser incapacitantes de forma temporária ou permanentes.
O fato é que independente de culpa ou dolo criminal ambiental, a empresa Vale, na esfera trabalhista, possui responsabilidade perante aos trabalhadores que ali estavam no momento do ocorrido e tiveram lesões ou vieram a óbito.
A primeira norma aplicável ao caso independente de qualquer análise vem a ser a Constituição Federal, principalmente quanto ao seu maior primado à dignidade da pessoa humana:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana;
Quanto ao dever de indenização temos a previsão nos incisos V, X do artigo 5º da CF:
“V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;” X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Também temos a aplicação:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; XXVII – proteção em face da automação, na forma da lei; XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;
Já quanto ao dever da empresa Vale referente à preservação do meio ambiente
saudável de trabalho é previsto no artigo 225 da CF:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Logo, ante a norma maior aplicável ao caso em apreço temos que todos os trabalhadores afetados pelo rompimento da barragem tem direito à indenização moral e material, independente de seguro contra acidentes de trabalho, na proporção do agravo causado e de forma integral.
Além da Constituição Federal também temos normas internacionais às quais o Brasil é signatário e que ingressaram, portanto, dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
Importa anotar que tais normas, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal tem caráter supralegal, ou seja, estão acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição Federal.
Dessa forma, temos a aplicação: Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, “Pacto de San José, Costa Rica”, Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, “Protocolo de San Salvador”, no que concerne a segurança do trabalho, e dever de indenização.
Também temos a aplicação das Convenções da OIT, como por exemplo, a Convenção 148 quanto a contaminação do ar, ruído e vibrações, Convenção 155 quanto a saúde e segurança dos trabalhadores, Convenção 174 quanto a necessidade de Prevenção de Acidentes Industriais Maiores, Convenção C176 sobre segurança e saúde nas minas, e outras.
Após essas normas temos a legislação ordinária.
Quanto aos prestadores de serviços sem vínculo empregatício, os autônomos que estavam prestando serviços no momento do acidente e que sofreram prejuízos de ordem moral ou material a legislação aplicável vem a ser o Código Civil Brasileiro em seus artigos 186,187 e 927.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Assim, neste enfoque temos que a atividade desenvolvida pela empresa Vale pode ser considerada atividade de risco, portanto, independente de culpa a mesma pode responder por dano de ordem moral e material ocasionada aos prestadores de serviços, com reparação por dano moral não limitada ou tarifada.
Nesta hipótese, o juiz que irá apreciar a questão poderá arbitrar o valor do dano moral considerando a ação ou omissão, podendo se aplicar a responsabilidade objetiva.
Quanto aos empregados e terceirizados da Vale que tiverem sofrido prejuízos de ordem
moral e patrimonial a estes devemos verificar se a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT será aplicável.
Contudo, tal norma deve ser vista com reservas e sob o critério de análise da Constitucionalidade e Convencionalidade de seu teor, principalmente após as alterações trazidas pela lei 13.467/17 – Reforma Trabalhista.
Vejamos seu teor a este respeito:
Art. 223-G. Ao apreciar o pedido, o juízo considerará: (…) § 1º Se julgar procedente o pedido, o juízo fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos, em um dos seguintes parâmetros, vedada a acumulação: I – ofensa de natureza leve, até três vezes o último salário contratual do ofendido; II – ofensa de natureza média, até cinco vezes o último salário contratual do ofendido; III – ofensa de natureza grave, até vinte vezes o último salário contratual do ofendido; IV – ofensa de natureza gravíssima, até cinquenta vezes o último salário contratual do ofendido. § 2º Se o ofendido for pessoa jurídica, a indenização será fixada com observância dos mesmos parâmetros estabelecidos no § 1o deste artigo, mas em relação ao salário contratual do ofensor. § 3ª Na reincidência entre partes idênticas, o juízo poderá elevar ao dobro o valor da indenização.
Assim, a lei como posta prevê que para arbitrar o valor do dano moral aos terceirizados e aos empregados da Vale o Juiz do Trabalho tenha que verificar o valor de seu salário e limitar o valor da indenização, pelo mesmo fato, ainda que as sequelas sejam as mesmas de acordo com sua remuneração, criando uma aberração jurídica.
Quanto a esta análise inicial já tivemos oportunidade de escrever a respeito na obra Reforma trabalhista comentada artigo por artigo — de acordo com princípios, Constituição Federal e tratados Internacionais – LTr, 2018:
O art. 5o, V da Constituição é claro no sentido de que “V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”, ou seja, o constituinte ao utilizar a expressão “proporcional” deixou ao prudente arbítrio do juiz, não utilizando nenhum critério de tarifação, sendo certo que no inciso X do art. 5o da Constituição também não observamos nenhum critério de tarifação para os danos morais.
Com todo o respeito ao legislador, o mesmo não pode limitar ao quantificar a indenização por danos morais até mesmo porque isto seria uma injustiça ao trabalhador como também nos casos em que o magistrado entende ser aplicável uma indenização por danos sociais.
Nota-se que antes da Constituição Federal de 1988 tínhamos algumas leis que tarifavam o valor da indenização por danos morais, como a Lei n. 5.250/1967 (Lei de Imprensa) e a Lei n. 4.117/1962 (Lei de Telecomunicações), contudo referidas legislações não foram recepcionadas pela Constituição Federal.
Além disso, temos a Súmula n. 281 do STJ que é clara no sentido de que “A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na Lei de Imprensa”.
Ora, o próprio STF já entendeu, no RE n. 315.297 de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, que a lei de imprensa ao fixar o valor de indenização era inconstitucional, parece que a mesma situação se repete agora com este texto legal da “reforma” trabalhista.
Com todo o respeito ao legislador, quantificar a indenização por danos morais é no nosso sentir um erro já que a dor, angústia entre outros sentimentos não têm preço.”
Assim, como visto não é possível a aplicação do texto legal implementado pela Reforma Trabalhista no que concerne a quantificação do dano moral, posto que é inconstitucional e inconvencional a indenização tarifada.
Pensar em aplicar a lei como posta é trazer ao campo dos fatos, a nossa realidade, situações injustas para se dizer no mínimo. Como já alertamos na mesma obra:
“Com a redação inicial da reforma em termos práticos, poderíamos ter a seguinte situação: dois trabalhadores lesionados com a perda de uma mão por conta de um acidente de trabalho, um deles alto executivo com remuneração de 20 mil reais por mês, que faz a maior parte de suas tarefas em exposições, e outro trabalhador operário com salário de pouco mais de 2 mil reais por mês, este último utilizava a mão perdida para o único trabalho capaz de desenvolver. Nesta situação o dano é o mesmo, perda de uma mão, mas com trabalhos distintos quanto ao uso da mesma.
Qual das mãos vale mais? A do primeiro que usa a fala ou a do segundo que depende dela para desenvolver as únicas atividades que sabe desenvolver? (….)
Logo, a tarifação do dano não pode existir no nosso ordenamento jurídico seja qual for o parâmetro de valores utilizado, posto que a dignidade do ser humano não pode ter um teto de valor pré-fixado, e nossa Constituição como visto prevê a possibilidade de reparação integral do dano.”
Dessa forma, ante o caso concreto dos trabalhadores da Vale empregados ou terceirizados quando do pedido de danos morais junto à justiça laboral se faz necessário o requerimento de declaração de inconstitucionalidade e inconvencionalidade da lei 13.467/17 ante a impossibilidade de tarifação do dano moral, já que o dano deve ser indenizado de forma integral e balizar a indenização pelo salário do trabalhador não permite a aplicação da Constituição Federal e das demais normas supra legais citadas.
Não bastando, é oportuno pontuar a crueldade da referida lei 13.467/17 quando aplicada a casos concretos, já que sua redação quando prevê inclusive que o juiz ao fixar a indenização deve considerar nos moldes do artigo 223-G, por exemplo, a retratação espontânea, o perdão tácito ou expresso, o esforço efetivo para minimizar a ofensa.
No caso em apreço até a presente não verificamos a retratação da empresa Vale ao acontecido, mas imaginem que tivesse ocorrido, somente por este fato a empresa pelo texto legal poderia ter a indenização reduzida? Caso se aplicasse a letra fria da lei a resposta seria positiva, o que ao cidadão comum gera revolta ante a noção inerente ao ser humano de justiça.
Não bastando, em notícia[1] recente vimos que a empresa Vale irá efetivar a doação de importância aos parentes dos familiares das vítimas de Brumadinho, o que é o mínimo que se pode esperar nesse momento.
Contudo, esse valor pode ser interpretado como um esforço para minimizar a ofensa ou até mesmo como um perdão tácito quando lemos a letra fria da lei, o que nos faz refletir que a lei como posta não merece ser aplicada e merece interpretação Constitucional, Convencional, e também de acordo com o senso de justiça comum por meio dos princípios gerais do direito e dos princípios trabalhistas, sob pena de penalizar ainda mais aqueles que já sofrem ante ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho.
Dessa forma, a norma que merece ser aplicada aos pedidos de indenização dos empregados e terceirizados da empresa Vale quanto aos danos morais e patrimoniais vem a ser a Constituição Federal, normas internacionais ratificadas pelo Brasil, Código Civil naquilo em que a CLT é inconstitucional e inconvencional, e a própria CLT naquilo que não afronta a norma maior.
Por fim, importa anotar que quando se tratar de indenização pretendida por familiares das vítimas fatais do evento empregados ou terceirizados da Vale o TST já decidiu no ano de 2017[2] que a prescrição aplicável ao dano em ricochete seria a prevista no Código Civil, e por ser a prescrição norma de direito material, por equiparação temos como entender que a norma aplicável nestes casos quanto às indenizações por danos morais também devem ser as previstas no Código Civil.
Contudo, a cautela deve prevalecer e todos os pedidos merecem ser estudados, fundamentados e realizados inclusive com a possibilidade dos pedidos sucessivos ou subsidiários para que o Judiciário Trabalhista, órgão de suma importância no nosso país possa conceder de forma mais eficiente a tutela jurisdicional àqueles que tanto sofrem com tal evento.
Artigo publicado no Justificando!